sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Obrigada, Cruzeiro do Sul!

Dia 24 de julho completei 6 meses de vida no Acre. Apesar de estar muito tranquila quanto às mudanças drásticas pelas quais passaríamos,sempre existe o receio. Mudanças como clima, fuso horário, cultura, a vida com amigos e familiares à distância, algumas incertezas (as crianças vão se adaptar? sistema de saúde funciona? se pegarmos malária? vamos aguentar as saudades da nossa vida carioca, da nossa família e amigos? vai dar certo?), tudo está dando certo. Apesar das saudades das pessoas que deixamos, do nosso apartamento que mal pudemos aproveitar, tudo vai bem.
Meu saldo é positivo. Em seis meses de Acre, coisas muito boas aconteceram.
_ Conhecer pessoas do bem é sempre bom demais. E aqui está cheio de gente muito boa.
_Fui oficialmente apresentada ao cupuaçu. Suco maravilhoso, maravilhoso, já estou preocupada se vou conseguir viver sem esse suco no RJ.
_Voltei a escrever, depois de um hiato de muitos anos. Já tenho material para uns três livros. Poesia, crônica, romance. Não há dinheiro no mundo que pague a inspiração e sensibilidade artística fluindo pelos poros, em qualquer lugar, seja no banho, na pracinha, seja olhando as estrelas ou o pôr do sol.
_Estou organizando três blogs. Sim, três, pois eu tenho problemas, só pode, poderia ser só um, mas eu tenho que inventar três. Quando estiverem ok, divulgarei aqui.
_Projeto de documentário sobre a cidade. Cruzeiro do Sul merece um documentário, histórias incríveis, peculiaridades de uma cidade em pleno desenvolvimento num buraco da selva amazônica. Demais, demais... Aguardando tempo e uma parceria para filmagem, mas já tenho o roteiro todo pronto. Só filmar.
_ Vida muito mais tranquila, mais paz, menos poluição, mais estrelas no céu. Nem Mastercard paga isso.
_ Ir à biblioteca toda semana como um programa de final de semana. Biblioteca da cidade é uma delícia, e levar as crianças pra lá (mais a Nanda, Lucas fica no futebol mesmo...) é ótimo, formando novos leitores sempre.
_ Estar em sala de aula. Vim pra cá sem muita perspectiva, achando que ia ficar só de mãe e dona de casa. Não rolou. Tirando todos os papéis que se multiplicam nas mãos de um professor (provas, redações, trabalhos etc), amo ser professora, amo uma sala de aula, amo alunos. Poder contribuir para a formação humana e pedagógica de alguém é um presente pra mim. E ainda ganho pra isso. Passei o dia 24 de julho, exatos seis meses de Acre, no meu lugar favorito: em sala de aula. Já recebi demonstrações de carinho que já valeram por toda minha estada aqui.
"Professora,a senhora vai ficar com a gente pra sempre?" Uma aluna do segundo ano do Ensino Médio, com um sorriso lindo, veio à minha mesa pedir isso.

Obrigada, Acre,por me receber tão bem.

O menino do açougue

Fiz esse texto para um aluno, o Henrique. Uma história de vida para muitas pessoas refletirem. 


O menino do açougue

Sexta-feira, fim da aula. Conversas do tipo “que bom que amanhã não tenho aula”, “não preciso acordar cedo amanhã”. O menino moreno, conformado, diz:
_Amanhã às cinco e meia da manhã já vou estar trabalhando.
 Órfão de pai desde os seus onze anos. Assassinado, muito provavelmente por questões ligadas à posse de terras. Amazonense de Ipixuna, deixou mãe e irmãos; sozinho, em Cruzeiro do Sul, no Acre. Dezessete anos.
Sábado de manhã, umas sete e meia, fui à área do cais do porto, onde fica o comércio popular. Tinha que comprar carne. Olhando os vários açougues que existem, senti um quase abraço por minhas costas do menino moreno, com o mesmo sorriso bonito que estampa seu rosto quando chega à sala de aula e me vê, também sorrindo para ele. O açougue em que trabalha fica por ali, e, claro, dei preferência ao dele. Andamos um pouco, chegamos ao local. Atendeu-me, orientou-me sobre açougueiros que vendem bife de carne de segunda como se fosse de primeira; fez a gentileza de guardar a minha compra, para que eu pudesse sair e comprar mais outros produtos. Parece outra pessoa, manuseando a faca, não lembra o menino da sala de aula. Parece mais velho, não por sua aparência, mas pela responsabilidade com que exerce o ofício. Naquele sábado, havia acordado às quatro e pouca da manhã. Não só naquele sábado, mas em todos os dias, exceto aos domingos, acredito.
Na semana seguinte, em sala de aula, chega um pouco depois da sete da noite, sempre com o sorriso bonito. A vida não parece ser difícil. Passei um tema de redação para a turma. A maioria dela, sei que não trabalha, são estudantes de manhã. Pouquíssimos entregaram seus textos, menos de oito. O menino moreno entregou. Mesmo tendo acordado antes das cinco da manhã, mesmo após o trabalho, do qual só sai depois da quatro da tarde. Não tem tempo para estudar, disse que leva o caderno para o açougue para estudar, mas o cansaço talvez não o deixe abri-lo. Mas o sorriso está ali, sempre que o solicito, nunca demonstra desânimo.
O que você faz aqui, sozinho, sem família, longe da sua casa, da sua terra? Quero ser engenheiro. Mas se não conseguir para engenharia, pego o curso que der para passar. Minha terra tem nada, não tem trabalho. Não tem faculdade. Não tem curso. Ensino Médio e acabou. Não peço ajuda para minha mãe: lembro dela dizendo que não ia sustentar vagabundo. Minha família tem terra, tem um  frigorífico, mas não quero ajuda. Orgulho de homem. Quero voltar e mostrar pro povo de lá que não dei se ser vagabundo. Depois que meu pai morreu, todo mundo achou que eu ia ser vagabundo. Quero mostrar que venci. Quero estudar.
Assim, o menino moreno me conta a sua história, depois de eu lhe falar do meu interesse de escrever sobre ela. Fez questão de fazer um resumo da sua saga para a vitória, para que eu pudesse colocar no meu texto. Firme ao relatar sua vida, emocionou colegas que o ouviram, mas não a ele próprio. Não se lamenta. Apenas luta diariamente, com seu trabalho e com o que sobra do seu dia para estudar. Sempre com o sorriso bonito.

 Isso foi ontem, dia 30 de abril. Nada mais oportuno, às vésperas do dia do trabalhador. Parabéns pelo seu dia, menino moreno. Que esse sorriso nunca saia de seu rosto, quando retornar a Ipixuna. 

p.s. O menino Henrique começará a cursar engenharia em agosto de 2014, na Uninorte, em Rio Branco, com a ajuda do FIES. Parabéns, menino, muita luz em sua vida.

Compras

Hoje nós fomos fazer compras no centro. Tem de quase tudo aqui. Me senti na Uruguaiana, no Saara, no mercadão de Madureira. A China chegou aqui no Acre.
Também compramos aipim (aqui é macaxeira). Digo que comi o aipim mais gostoso do mundo. Delicioso. Muita coisa “orgânica”, como a moda da alimentação saudável manda dizer,  oriunda de plantações dos ribeirinhos ou excedente de agricultura de subsistência . Compramos também polpa de graviola e de cupuaçu, fresquinho... Já fiz no almoço o suco de cupuaçu, já viramos fãs. Eu e Marco
, porque Lucas e Nanda ainda estão resistentes a novos sabores.
Do que o Lucas mais gostou hoje? Do saco de 1 kg de Serenata de Amor que tivemos que dar a ele. Ninguém faz ideia da felicidade dele ao saber que existe bombom serenata aqui no Acre... 

Jambo com sal

_A senhora nunca comeu jambo com sal?
Essa frase, dita por uma aluna dia desses no intervalo da aula foi o suficiente para me fazer refletir sobre a vida nas grandes cidades...  Jambo com sal! Manga com sal, um outro aluno também me questionou se nunca havia provado. Confesso que nem sei como é jambo. A linda aluna, ainda, seguiu-se com essa:
_Ah, a senhora não conhece as coisas boas da vida!
Viver na selva urbana em que se transformou a cidade do Rio nos tirou o olhar às coisas simples da vida. O bom é aquilo que é “glamurizado” por ser industrial. O máximo é abrir sua geladeira e ver caixas de lasanha e pizza congeladas, caixas de nuggets, muitas coisas industrializadas, que são práticas no dia a dia corrido de quem fica horas no trânsito, trabalha longe de casa, estuda, tem que chegar em casa e ainda preparar alguma coisa para comer. A lasanha salva o dia. E destrói, a longo prazo, seu estômago, faz a sua pressão subir e todos aqueles problemas que você aprendeu no programa matinal da televisão, mas não liga. Para muitos, é uma grande ostentação ter caixas de qualquer coisa industrializada na geladeira. É um orgulho encher o carrinho do mercado com produtos que não faziam parte da realidade de um grande número de pessoas há alguns anos. Percebi que os carrinhos de compra estão cada vez mais cheios. Caixas, caixas, quilos de sódio. Vale lembrar que ostentar está na moda...
Outro dia, conversando sobre a culinária local, com a qual eu ainda não havia tido contato, um aluno disse que me traria a tapioca que ele costuma fazer em casa. E disse ser muito melhor do que a vendida pelos ambulantes. Sem “glamour”, mas com um carinho especial. “O essencial é invisível aos olhos”, já disse Saint –Exupéry, no seu famoso clássico. Para mim, já é a melhor tapioca do mundo, feita não apenas para ser consumida, mas para que eu conheça melhor aquele menino que sempre veste camisa de banda de Rock.
O simples é mais, num momento em que o “status” de uma pessoa é medido pela quantidade de industrializados que consome. Nas escolas, quantas histórias ouvi de crianças que sofriam gozações dos colegas por terem levado nas suas merendeiras frutas. O menino que era “zoado” na escola porque tinha em sua lancheira fruta de conde. Ora, quem come fruta de conde?? O menino, ué. Ele não pode? Ah, ele nunca compra lanche, deve ser pobre. Ser é ter, mentalidade que vem se desenvolvendo precocemente nas escolas...
 Uma vez, no colégio em que trabalhava, fiquei uns minutos observando a cantina. Quase todas as crianças compravam seus lanches, e só consumiam salgadinhos assados, os quais chamo de isopor temperado, com refrigerante. As alunas mais gordinhas pediam refrigerante light. Meninas com seus 8, 10 anos. O problema: isso acontecia (e acontece na maioria das escolas) todos os dias. Uma vez, reclamei na escola dos meus filhos, que a cantina só vendia refrigerante e salgados. A coordenadora me disse que, se não vendesse os tais salgados, os alunos reclamariam, já que são acostumados a isso. As próprias mães reclamariam. Numa feira de Ciências da escola, cujo tema era vida saudável, os alunos apresentaram trabalhos, cartazes sobre o tema. Degustação de produtos saudáveis, festival de barrinhas de cereais, enfim. Percebi um  movimento grande na cantina. E não é que eram os pais e crianças comprando pizza, salgados e refrigerantes, após todo aquele trabalho sobre alimentação saudável? E como vendeu!!
Crianças doentes, com pressão alta, diabetes, colesterol alto. Pais trabalhando ainda mais para pagar a escola, o plano de saúde, os remédios, a natação, o futebol, as caixas de lasanha, os nuggets, o lanche  diário na cantina.

Enquanto isso, acho que preciso provar logo jambo com sal e a tapioca do menino roqueiro. Preciso conhecer as coisas boas da vida. Simples.

Presentes da vida

Comecei a dar aula num cursinho aqui em Cruzeiro do Sul, uma turma preparatória para o concurso da Caixa Econômica Federal. Comecei com receio, uma carioca numa cidade do extremo norte do país, o que achariam os alunos de mim? Receio normal, cada turma é uma turma, mas não sabia como seria no Acre.
Encerrei com a turma hoje, agora há pouco (no Acre, são duas horas a menos, em relação ao restante do país). Terminamos a aula com abraços e distribuição de bombons (levei para dar aos alunos), e com agradecimentos, por terem, enfim, aprendido alguma coisa de Português.
Até aqueles alunos mais calados vieram até a mim, agradecer, com um abraço.
Não tem presente melhor para um professor do que o carinho de seus alunos e o sentimento de missão cumprida. Muito feliz.

P, M ou G??

Estou vendendo meu micro-ondas, porque o  Marco comprou um de 220 volts. Anunciei num grupo de classificados no facebook. Eis uma interessada. Depois de perguntar o trivial, condições, tempo de uso, valor, perguntou:
" Qual o tamanho, P, M ou G?"

Será que ela vai vestir o micro-ondas???

Revendo hábitos...

Coisas de cidade pequena... Dia de almoçar fora. Como acordamos tarde e tomamos um café da manhã bem reforçado, saímos pra almoçar às duas horas da tarde.
Resultado: todos os poucos restaurantes da cidade já fechados.
Estamos acostumados à escravidão daqueles que trabalham em comércio, domingo a domingo aberto, o dia todo, algumas 24 horas por dia, como o Habbib's e Mcdonald`s. Como se todo o comércio tivesse de estar à nossa disposição o tempo todo, qualquer hora do dia ou da noite. Muitas vezes, pensava se aquelas pessoas não gostariam de estar em casa, pelo menos no domingo, em vez de estar folgando numa terça, como acontece. Muitas mulheres com filhos, trabalhando nas lanchonetes, mercados, restaurantes, para faturar para seus patrões e atender à  vontade daqueles que querem comer alguma coisa, dar uma voltinha no mercado pra comprar uma bobagem qualquer. Novos tempos. Hoje, vendo todos os restaurantes fechados, cheguei a duas conclusões: primeira, a gente tem que almoçar mais cedo, pois o povo aqui almoça cedo, é hábito local. Restaurante aqui, no máximo até 13:30.
Segunda conclusão: todo mundo tem o direito de descansar e passar o domingo em casa.